domingo, 6 de setembro de 2015

Futebol: um fenômeno (nem um pouco) simples de se analisar

Muito se ouve por aí da boca do povo que "o futebol é simples", que "complicam demais um jogo que não tem mistério", etc. Quando alguém busca analisar o fenômeno futebol sob outras perspectivas além do que a "imprensa especializada" faz, esse cidadão é tratado como um E.T, um "professor pardal", um louco. Tem também quem olhe para essa pessoa como pedante, como "tentando mostrar que sabe mais", como "inventor de teoria" (já ouvi disso tudo por aí...).

Quantas vezes não ouvimos aquele torcedor corneteiro que fala com "grande experiencia de peladas e jogos vistos no Maracanã", que o "futebol não tem mistério"? Fonte: Flatos de um Flamenguista


Estimulado pela leitura que venho fazendo do livro do ótimo teórico português Jorge Castelo "Futebol: A organização do Jogo", convido os leitores desse post a uma reflexão que pouco fazemos: 

Como podemos definir um JOGO DE FUTEBOL?

Uma boa definição seria: "22 jogadores distribuídos num espaço restrito em duas equipes de 11 jogadores, com o objetivo de fazer mais gols que o conjunto adversário." Sendo gol, "a ação de colocar a bola com qualquer parte do corpo (excluindo os braços e as mãos) numa baliza situada no centro das linhas de menor dimensão do retângulo."

Só nesse parágrafo anterior, citei alguns dos principais elementos visíveis que definem o jogo:

- Os 22 jogadores divididos em 2 equipes de 11.
- O espaço de jogo
- A bola

Nesse flagrante do Painel Tático, blog do bom analista Leonardo Miranda, podemos ver a grande maioria dos jogadores, o espaço (terreno do jogo) e a bola sendo lançada.

Pensemos. São 22 indivíduos, cada um com suas particularidades, que se movem e tomam decisões em torno de uma bola dentro de um espaço delimitado. Eles se relacionam entre si tanto no sentido de cooperação (com sua equipe), como no sentido de oposição (com o adversário). Além da relação entre os jogadores, há a relação deles com o ambiente no seu entorno (espaço, bola, etc.) e seu respectivo contexto (situação no campeonato, tipo de jogo, etc.) que não podem ser ignorados.

E existem quatro componentes básicas reconhecíveis que essas relações do jogo citadas anteriormente exigem nas ações que ocorrem numa partida:

- FÍSICA: Demandas/respostas que o corpo do jogador sofre/dá para as situações de jogo
- TÉCNICA: Gestos motores permitidos pela regra do jogo utilizados para a resolução de problemas que o contexto oferece
- TÁTICA: Que se diz respeito a função que o individuo tem dentro da estrategia de sua equipe para otimizar/facilitar as resoluções dos problemas que são submetidos
- PSICOLÓGICA: Como o lado emocional influencia na resolução das situações de jogo

Fonte: Slide de Periodização Tática do professor José Guilherme Oliveira

Logo, analisar qualquer fato/ação do jogo ignorando a coexistência desses 4 fatores citados acima é descaracterizar completamente a realidade que o futebol possui por si só. E é o que mais vemos por aí na imprensa esportiva. Quantas vezes comentaristas atrelaram más atuações de um determinado jogador dando como explicação isolada a "falta de forma física", ou "não estava num bom dia tecnicamente", "foi mal escalado", "estava nervoso", etc. Esses argumentos citados até influenciam na situação, mas usa-los isoladamente, na grande maioria das vezes, mascara o que realmente aconteceu.

Ou então, quantas vezes já se viu pessoas quererem "analisar uma equipe taticamente" simplesmente discutindo a estrutura utilizada pela equipe? 4-3-3's, 4-4-2's, 3-5-2's são auxílios didáticos para se entender o posicionamento e facilitar observações, mas eles nunca podem ser priorizados, deixando em segundo plano o que é de fato importante: a análise dos mecanismos utilizados pela mesma equipe para os contextos que o jogo lhe ofereceu.

Do post do Vasco x Fluminense do início do ano. Reconhecer as estruturas só para servir de recurso didático! Explicar o que aconteceu contextualizando as ações é muito mais importante!

Fugir do pensamento reducionista, que ainda domina o processo de educação das escolas, é um desafio para um analista de futebol. Com o tempo, percebeu-se que o todo (jogo) é maior que a soma das partes (tática, técnica, física, psicológica), portanto, analisar cada pedaço separado é ignorar completamente as relações entre eles. Pensar de forma sistêmica não é fácil e requer muita prática.

O PENSAMENTO SISTÊMICO E O FUTEBOL. COMO RELACIONAR? 

O pensamento sistêmico é uma nova forma de abordar a análise de um fenômeno sobre a perspectiva da complexidade. Larga-se a fixação de analisar fatores de forma fragmentada para analisar as relações entre essas componentes.
Se formos pensar em todas as combinações de relações entre os elementos que compõem um jogo de futebol, temos:

- A relação de um JOGADOR com seu COMPANHEIRO DE EQUIPE
- A relação de um JOGADOR com a sua EQUIPE
- A relação de um JOGADOR com o JOGADOR ADVERSÁRIO
- A relação de um JOGADOR com a EQUIPE ADVERSÁRIA
- A relação de um JOGADOR com a BOLA
- A relação de um JOGADOR com o ESPAÇO
- A relação EQUIPE com um JOGADOR ADVERSÁRIO
- A relação EQUIPE com a EQUIPE ADVERSÁRIA
- A relação EQUIPE com o ESPAÇO
- A relação EQUIPE com a BOLA
... dentre outras infinitas, nunca se esquecendo de analisar sob a perspectiva das quatro componentes básicas do jogo (tática, técnica, física e psicológica)

Fonte: Exotherica

Enfim, se eu for citar todas as relações existentes dentro de um jogo de futebol, eu perderia muitas linhas desse texto e você leitor, encheria o seu saco lendo (se já não estou...).

É de extrema importância levar essas relações em conta na hora de fazer uma análise. Entender que jogador, através de seus recursos, dificultou mais o planejamento coletivo do adversário e como este mesmo reagiu, compreender como o contexto coletivo da equipe e seus respectivos mecanismos influenciaram na atuação de um jogador, ler quais comportamentos coletivos de um time dificultaram a ideia de jogo do rival, dentre diversas outras relações, ajudam a entender muito o porque dos fatos do jogo terem acontecidos do jeito que ocorreram.

Passada essa discussão filosófica maluca, fica um questionamento indireto (mas ao mesmo tempo muito direto) ao tio corneteiro do início do post:

COMO ALGUÉM AINDA OUSA DIZER QUE O "FUTEBOL É SIMPLES", TENDO ESSA INFINIDADE DE RELAÇÕES CITADAS ACIMA INFLUENCIANDO NOS ACONTECIMENTOS DE UMA PARTIDA???????

Sendo assim podemos definir o jogo de futebol como fenômeno em algumas características básicas:

- COMPLEXO: Por ser um fenômeno que se compõe de vários elementos que mantem relações (algumas citadas acima) de interdependência

- DINÂMICO: O jogo de futebol evolui no tempo com um comportamento desequilibrado, onde uma jogada que virá a ocorrer depois é extremamente dependente do que aconteceu anteriormente, e pode ser mudada radicalmente a partir de pequenos estímulos na jogada que está acontecendo agora.

- ALEATÓRIO: Porque os eventos ocorridos em cada momento de uma partida dependem da ação de cada um dos 22 jogadores, sendo assim exclusivamente ligados a interpretações aleatórias que esses jogadores podem ter e imprevisíveis, devido a infinidade de possibilidades de decisões a serem tomadas.

"SE É TÃO COMPLEXO COMO VOCÊ DIZ, ENTÃO COMO É POSSÍVEL ANALISAR UM JOGO DE FUTEBOL?"

Existe uma grande diferença entre ser complexo e ser difícil. Complexidade é relacionado a abrangência de elementos que compõem um fenômeno e suas relações, enquanto dificuldade está diretamente relacionada a barreiras que impedem de se fazer algo. Modelar o comportamento dos sistemas (indivíduos, setores de uma equipe, equipes) a partir da elaboração de conceitos que norteiam o jogo (princípios fundamentais e estruturais do jogo, ações técnico-táticas coletivas e individuais, etc.) foi o desafio de muitos teóricos do mundo do futebol e que será discutido num próximo post ainda nessa semana. Abraços!

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